segunda-feira, 2 de novembro de 2015

E do leite derramado.



E do leite derramado. 

Acuda! Acuda! Mais um bebê sem ter o comer. Sem o ventre querido para aquecer. Sem os braços quentes para ninar. E do sopro sutil se ouvem as misérias. Dos buracos feitos pela dor. Do retrato feliz espedaçado no chão. E o choro que se vê na madrugada. Um choro latente, quente, quente. Dói o coração. Enfia o bico no menino. Limpa o catarro com a mão. Acende uma vela para o santo. E chora. Chora. Em mais uma oração. Rebento perdido na vida. Sem uma ninhada. Sem comoção. Ecos miseráveis. E a tia põe a água no forno. É como se fosse a mãe. Mistura com o que sobrou do leite anterior. É mais barato. Dura uma semana.  Ele não vai perceber. Ele não vai sentir. Quem mandou não ter leite. Acuda. Acuda. Chama a Sissa para segurar o menino. 

E no monólogo noturno:  Que eu não queria uma vida dessa p'a os meu fio de coração. Eu não queria. Botar esse leite pru menino tomar. Vai tomar todo. Que é bom para disfarçar. Amanhã vou fazer faxina. Pegar uns trocados pra comprar o leite e o feijão. Espero que Sissa cuide bem do menino. Um dia hei de ter emprego. 


E era quase um rato. Pequeno. Que de tanta fome não chorava. Resquícios da miséria materna. Acudido pela tia. Do amor nocivo. Nasceu quase pedinte. Mais um estranho esquecido. Um choro que não mente. Acuda! Acuda! Que a mãe já não respira. Que o sonho contamina. Quem não consegue sobreviver nessa vida. Que era quase cinco e a mãe sangrava. Sangrava. Assassinada às quatro. Esquecida na vida.


Ainda pouco se sobra. 

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