quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Do sentimento de impotência.



             Ela corria...
           Corria o mais rápido que suas pernas podiam alcançar, entre os becos e vielas escuras da sua cidade. Com o seu sapato plataforma que fazia ploc, ploc por onde passava, apenas seguia. Seguia entre ladeiras e buracos. Seguia com sua respiração abafada, sua pele suada, seu corpo trêmulo. O sangue que pulsava. O vento seco que adentrava os becos parecia sugar o seu corpo para longe... Longe do seu destino. E o cabelo...?! Cabelo esse que insistia grudar em seu rosto, colar em sua pele e tapar a sua visão, revelando-se como o que havia de mais comprometedor à sua existência. 
            Entretanto, mesmo com tais impasses, continuava a correr, ainda que acreditada na solução. Achava-se no limite e não aparecia alguém para ajudar, ou uma alma que ouvisse o seu grito seco, miúdo, apagado. 
              Corria avante e sem esperança, dobrando cada rua que aparecesse à sua frente, segurando os seios que atrapalhavam os seus anseios. E, no intuito de provocar a leveza desejada, colocou a chave no bolso e com a força que lhe cabia, jogou a sua bolsa em alguma casa que apareceu no decorrer do caminho. Apenas corria e corria. Do sufoco, do desgosto, do gosto de sangue que já brotava em sua garganta. Seca. Seca... Tal como a sua vibração perante a vida naquele instante. Dentro do vazio sem fim, dos pensamentos a mil e das lágrimas  indesejosas que teimavam em brotar no seu rosto. Esse misto de loucura, com o desejo de desaparecimento. Parecia não mais sonhar. Queria apenas não existir, não ter passado por aquele caminho. Não ser quem era.
               Só que, como um sonar marítimo, representando os seus mais escondidos instintos. Viu, de repente, de relance. Algo que lhe causou imenso alívio. Entre as casas da rua que percorria havia uma luz acessa. Um portão aberto, com uma família retornando para a sua casa. Sendo assim, em meio a um ímpeto bateu-se contra o carro, o que provocou grande espanto dos moradores. Sentiram-se ameaçados por um momento, mas vendo aquela figura entre lágrimas, sentiram complacência. O que a permitiu dizer poucas palavras e elas quase não saíam,... Mas que possuíam um quê de esperança:

                - Por favor, senhora, deixe-me entrar...

            Em prantos, aos nervos e tremendo. Do sufoco passado. Da pressa. Da pressa. Do choque. Permanecia estática no sofá daquela casa. Olhando o nada. A sensação - não sensação, do desespero passado, da ligação para a polícia e das suas palavras quase indecifráveis. Não queria lembrar, não conseguia e nem queria imaginar que tivesse acontecido algo do tipo consigo. Padeceu.
                Com a ajuda da família, retornou à sua casa e, entre passos mansos e cansados, finalmente estava em seu lar. Colocou sua chave na mesa e em seu caminhar lento e seco dirigiu-se ao banheiro. Onde, em meio a esse turbilhão de pensamentos e sentimentos, após o banho tomado, que alternava constantemente entre o quente e frio da água. Da pele que não queria sentir-perder o tato. Brotou em seu corpo algo que reacendeu o seu desgosto o que fez com que, depois de ter lavado o seu cabelo, fosse ao espelho e retirasse o que havia de mais inconveniente. 
               Depois de ter retirado o que lhe havia de estético, o que era considerado como a moldura da face, colocou as suas mãos sobre a sua cabeça e, deslizando na parede do cômodo, em meio aos cabelos espalhados no chão e as pensamentos que focavam a respeito de tudo o que lhe havia acontecido, acendeu um cigarro.
                Ainda trêmula, com a boca seca e em meio a fumaça criada, tragou insistentemente para, finalmente, sumir.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

E do leite derramado.



E do leite derramado. 

Acuda! Acuda! Mais um bebê sem ter o comer. Sem o ventre querido para aquecer. Sem os braços quentes para ninar. E do sopro sutil se ouvem as misérias. Dos buracos feitos pela dor. Do retrato feliz espedaçado no chão. E o choro que se vê na madrugada. Um choro latente, quente, quente. Dói o coração. Enfia o bico no menino. Limpa o catarro com a mão. Acende uma vela para o santo. E chora. Chora. Em mais uma oração. Rebento perdido na vida. Sem uma ninhada. Sem comoção. Ecos miseráveis. E a tia põe a água no forno. É como se fosse a mãe. Mistura com o que sobrou do leite anterior. É mais barato. Dura uma semana.  Ele não vai perceber. Ele não vai sentir. Quem mandou não ter leite. Acuda. Acuda. Chama a Sissa para segurar o menino. 

E no monólogo noturno:  Que eu não queria uma vida dessa p'a os meu fio de coração. Eu não queria. Botar esse leite pru menino tomar. Vai tomar todo. Que é bom para disfarçar. Amanhã vou fazer faxina. Pegar uns trocados pra comprar o leite e o feijão. Espero que Sissa cuide bem do menino. Um dia hei de ter emprego. 


E era quase um rato. Pequeno. Que de tanta fome não chorava. Resquícios da miséria materna. Acudido pela tia. Do amor nocivo. Nasceu quase pedinte. Mais um estranho esquecido. Um choro que não mente. Acuda! Acuda! Que a mãe já não respira. Que o sonho contamina. Quem não consegue sobreviver nessa vida. Que era quase cinco e a mãe sangrava. Sangrava. Assassinada às quatro. Esquecida na vida.


Ainda pouco se sobra.