domingo, 25 de outubro de 2009

A vida de uma cotista.

Hoje contarei minha vida. Apenas poucos a conhece, mas há uma força incontrolável dentro de mim tentando explodir, por comentários que tenho recebido por ser cotista. Nem sei por onde começar, nunca escrevi algo parecido antes, certo que eu tenho uns rascunhos e tentava passar para o papel, só que hoje chegou ao meu limite, entende?
Me chamo Clara e nasci em um quase fim de mundo com mais cinco irmãos, todos magrinhos. Mamãe dizia que era pra irmos pra escola pra ser alguém na vida. Assim que fazíamos a trajetória à pé de quase 1 hora, chegávamos em casa famintos. Comíamos um pouco de arroz com galinha, fazíamos a lição e depois a roça. Trabalhávamos 3 horas lá, como quase todos tinham a mesma idade, ficava fácil terminar o serviço. Eu como irmã mais nova trabalhava com os serviços mais fracos, ou ajudando a meus irmãos mais velhos.
Éramos felizes na nossa maneira, mas no dia que a escolinha fechou e a seca assolou drasticamente fomos obrigados a nos mudar pra cidade, já que os animais tadinhos, puxa... Morreram quase todos, sobrando uma vaquinha e o burro.
Meu pai com 40 anos e meu irmão mais velho de 16 anos arranjaram serviço de pedreiro. Minha mãe trabalhando de empregada doméstica. Minha irmã de 15 anos cuidava dos outros irmãos, arrumava a casa para completar a renda fazia uns bordados pra vender no mercado, ia todo mundo pra lá na esperança de que ela vendesse tudo, sobravam poucos, mas eram tão bonitos que tornava impossível não ter comprador.
Entramos em uma nova escola, mas dessa vez só eu e meus quatro irmãos. Tivemos que voltar um ano, pois estávamos atrasados em muita coisa. Agora a escola não era mais tão longe, as turmas eram mais cheias e barulhentas. Sentia muita saudade da minha professora de antigamente, essa vivia quase sempre estressada com a turma.
Sentava na frente, o meu desejo era aprender. Ela notava o meu esforço, apesar da dificuldade e me ajudava. Depois da aula como na minha casa não tinha espaço, estudava na biblioteca da cidade ia à pé do colégio pra lá, pois se eu fosse pra casa demoraria demais, levava um pão com manteiga, ou então juntava dinheiro e comprava qualquer coisa pra comer em um vendedor ambulante.
Apesar de ter sido atrasada no colégio, existia muita gente até mais velha do que eu lá na sala. Não existia muito o preconceito por eu ter vindo do sertão, até porque muitos do que estavam lá não possuíam tanto conhecimento da minha vida, até porque eu não tinha muitas amizades por lá.
Minhas notas sempre altas e tendo conhecimento do nível da educação que o colégio proporcionava, a professora chamou minha mãe para que ela me trocasse de escola, já que o colégio não oferecia tanta assistência para mim, e deu o nome de alguns colégios públicos melhores. Todos ficavam distantes da minha casa, mas afirmando já estar acostumada em ir à pé para o colégio, começou a minha saga. Era certo que o colégio era totalmente diferente do que eu estudava. Meu irmão dois anos mais velho foi comigo. Os outros permaneceram no mesmo.
Conversávamos sobre muita coisa, ele falava que muitos dos seus amigos haviam deixado de estudar para trabalhar, ficava triste por eles e se sentia orgulhoso por ter um pai e uma mãe como os nossos que prezavam os estudos e o fato de Carmem e Carlos terem ido trabalhar, foi por muita insistência de ambos, por acharem que não davam pra nada nos estudos, eles pararam no nono ano.
Carmem havia se casado com um feirante do mercado, sua barraca de artesanatos havia dado muito certo, participava sempre desses concursos oferecidos pelo estado, além disso, trabalhava como costureira no bairro em que ela morava agora.
Carlos namorava Margarida, uma empregada doméstica de uma das casas que ele foi contratado para reformar. Juntava dinheiro, pois queria ser taxista, e isso era notável, raramente gastava com coisas desnecessárias.
Eu estava no sétimo ano, meu irmão Cassiano no 1º ano. Demorava quase uma hora da minha casa até o colégio, ele era realmente era muito diferente, mais arrumado, os banheiros eram mais limpos, a cantina oferecia refeição, tinha uma biblioteca. Lá eu realmente fiz novos amigos, alguns, poucos na verdade, eles tinham tanta vontade de estudar quanto eu. Estava com 14 anos, já não havia tanta diferença de idade quanto o outro colégio, eu cheguei a estudar com pessoas com quatro ou cinco anos mais velhas do que eu no anterior ou até mais.
As minhas outras duas irmãs continuaram no meu antigo colégio. A Cristina e a Cristiana eram gêmeas. Passavam a maior parte do tempo em shows de pagode e de namorinho. Não eram gêmeas idênticas e eram muito unidas. Vendiam coisas através de catálogos, pra poder comprar suas roupas, sapatos e bijuterias. Diziam querer abrir uma loja, mas não sabiam como, pois gastavam todo o dinheiro que rendia com elas mesmas.
Cristina se casou com 19 anos, a Cristiana ficou irritada no começo com a situação. O seu marido era de uma condição melhor que a nossa, ela foi morar na casa em que ele comprou, em um bairro totalmente diferente. Ele era classe média. Mais velho que ela 10 anos, passou a pagar o resto dos estudos dela em um colégio particular. Já não víamos mais Cristina com tanta freqüência. Ela ia para lá às vezes em algum final de semana, estava diferente, mais bonita. Grávida, queria fazer faculdade de moda, agora tinha mais sonhos que antes, pensava nos estudos. Talvez pelo dinheiro investido nela, mas acredito que pela mentalidade das pessoas do novo colégio. Terminou o 3º ano naquele mesmo ano, com 20 anos, fez faculdade de moda.
Cristiana passou a andar mais com as outras meninas, freqüentava cada vez mais o pagode. O dinheiro que tinha da venda das roupas já não precisava dividir com a Cristina, passou a ir pra academia. Terminou o 3º ano com 20 anos. Abriu uma loja no centro com muita dificuldade, trabalhava muito, não quis ir pra universidade. Não queria saber de relacionamentos, pois não queria abdicar da sua vida de festas para homem algum.
Cassiano passou em engenharia, namora uma menina que faz física. Trabalha de estágio em um escritório, ela trabalha como professora.
Hoje eu vou tentar pela 2º vez passar em direito. Espero que com essas cotas consiga. Tenho 19 anos agora. Esforcei-me muito, não acho justo que por eu não ter tido condições de pagar um colégio particular não possa entrar na universidade, se reclamam pelo fato do governo não oferecer um ensino melhor, eu também reclamo, pois não tenho culpa da realidade do sistema, muito menos da que eu vivi!

3 comentários:

Anônimo disse...

Olha, fui profe do ensino estadual por 4 anos e concordo com vc. Não concordo com a cota para negros. Acho que deveria aumentar sim a chance para quem estuda toda vida na escola pública e sempre tira boas notas, como nos EUA, só que lá ainda sim tem que ser pago, mas aqui, seria mais que justo aquele aluno que tanto se esforçou perante a mediocridade das escolas públicas, permanecer aprendendo através do que é oferecido pelo governo.
um grande abraço, sua história é muito bonita e compartilhada de formas diferentes com muitos outros jovens.

G.B. disse...

Saudade daqui.
*---*

Anônimo disse...

Eu nunca concordei com o sistema de cotas para negros, pois acho que é uma atitude preconceituosa por si só. O fato de existir cotas para alunos de escolas públicas está exatamente na questão que você tocou: a má qualidade de ensino da escola pública. Acho que a solução não está nas cotas, e sim numa reformulação do sistema educacional.